Teatro, a mais directa das Artes

Do serviço público<br>à deriva neoliberal

José Carlos Faria

Falemos então de Teatro, a mais directa das Artes – seu ponto de confluência e irradiação, visto que os que para nossa desgraça mandam, quando (em péssima tradução de jargão tecnocrático) nomeiam os «actores» querem apenas dizer protagonistas ou intervenientes num dado processo que nada tem a ver com o palco e sempre que falam de «cenários» pretendem tão só, lá na sua, referir-se a abordagens de hipotéticas conjunturas.

Os decisores políticos optam convictos pela crescente mercantilização da Arte e da Cultura

Nesta Europa cega pelo economicismo e incapaz de respeitar as suas origens, a Grécia, matriz milenar da civilização ocidental, deu-nos o Teatro, quantas vezes premonitório acerca dos ventos de mudança, engendrando uma reflexão sobre a relação das coisas do Mundo e dos Homens, dos seus problemas, das suas angústias, dos seus amores, alegrias e realizações, de vitórias e derrotas, da vida e da morte… Um símbolo bem conhecido do Teatro patente nas máscaras da Tragédia e da Comédia, revela que o drama e o riso foram, numa escrita própria que se ia estabelecendo com o jogo e corpo dos actores, os poderosos instrumentos de análise e desmontagem crítica da realidade, atenta à subtileza dialéctica das contradições, profundamente impregnada do humano e, pouco a pouco, numa partilha essencial com os espectadores, tomando o destino em mãos, substituindo-se aos rituais dos deuses e projectando-se no futuro. Ora esta tomada da consciência de si, não tutelada, a inteligência em acto numa comunidade de iguais reunidos em assembleia que é a função teatral em potência, sempre assustou o Poder (e em particular o Poder absoluto) cuja atitude oscilava entre o desejo de ter ao seu serviço um aparelho de propaganda gloriosa à medida dos seus desígnios ou tender para encarar o Teatro como ameaça subversiva dificilmente controlável. Nesse confronto de luz e sombra na arena da História entre mentalidades progressistas e reaccionárias, a Revolução Francesa via nos edifícios teatrais os «ginásios da alma» e o Teatro como «a Escola dos Homens esclarecidos» e pelo outro lado, Napoleão Bonaparte, traídos os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade ao proclamar-se Imperador, reintroduzia as práticas censórias abolidas pela legislação revolucionária. Os puritanos fecharam os teatros londrinos onde tinha brilhado o génio de Shakespeare. A Inquisição condenou na fogueira e mutilou textos. Em tudo igual ao que nos anos 30 do século XX veio a suceder, por exemplo, à obra de Brecht queimada em auto-de-fé diante da Ópera de Berlim.

No final da II Guerra Mundial, com a derrota do nazi-fascismo, o continente europeu reerguia-se dos escombros e atribuía nas pesadas tarefas de reconstrução um importantíssimo papel à Cultura e muito em particular ao Teatro. O exemplo do nascente movimento da descentralização teatral, em França, demonstrava a relevância de que a energia criadora se poderia revestir na concretização dos anseios populares de uma sociedade democrática, confirmando que não há verdadeiro desenvolvimento, na sua mais ampla expressão, sem uma dimensão cultural onde a componente de criação artística desempenha um papel fundamental. O Teatro assumiria o perfil de Serviço Público (como lembrava Jean Vilar, tão imprescindível à vida como a electricidade, o gaz e a água, hoje em dia alvos de apetites privatizadores), manifestação do pulsar da Polis e ao serviço da comunidade, em defesa da língua e da promoção dos factores de identidade nacional, lidando com a grande literatura dramática de clássicos e contemporâneos, exigente e sofisticado nos seus pressupostos qualitativos ao equacionar o real e assim de facto emancipador; em suma, numa feliz definição, «elitário para todos». Em Portugal, submetido à repressão, à miséria e à guerra, seria necessário sofrer mais três décadas até a ditadura ser derrubada, iniciando uma via transformadora que visava a superação em todos os domínios dum atraso estrutural acentuado, na qual o Povo se achava a reinventar um País. Évora foi então o epicentro da descentralização teatral portuguesa, levando o Teatro onde o teatro nunca tinha podido ir, com o surgimento da primeira companhia profissional sediada fora dos grandes centros urbanos de Lisboa e Porto e afirmando em paralelo, articulado com o seu funcionamento quotidiano, uma escola de formação de actores e posteriormente também de técnicos.

O Deus Mercado

O direito à fruição cultural das populações passou a ser constitucionalmente consagrado porém o Teatro continuou a lutar pelo reconhecimento de um direito de cidade tão amiúde negado e em simultâneo, o Estado demonstrava indisfarçável relutância em assimilar e organizadamente pôr em marcha o Serviço Público Artístico. O refluxo que se foi intensificando com o ataque sistemático às conquistas de Abril deixou sequelas que em muitos casos configuram uma verdadeira regressão civilizacional. Sucessivos governos tentaram continuadamente eximir-se ao ónus que lhes cabe e os devia obrigar e este actual, em concreto, na magnitude da sua incompetência atrevida e ignorante, plena de demagogia e novo-riquismo deslumbrado, parece esforçar-se sem descanso a fim de que o célebre juízo de Garrett se possa então cumprir: «O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há. Não têm procura os seus produtos enquanto o gosto não forma os hábitos, e com eles a necessidade». É que, como, de forma certeira, assinala o historiador marxista Eric Hobsbawm «acontece que a fruição de uma arte não é uma experiência puramente privada, mas antes social, por vezes até política, sobretudo no caso de realizações públicas planeadas em locais especificamente construídos para esse efeito, como as salas de espectáculos».

Presta-se culto incensado no altar do Deus Mercado que só ao lucro concede os seus favores. Mergulhados em plena Sociedade do Espectáculo (sendo que o conceito de espectáculo, sob cuja voracidade tudo se torna pois espectáculo, espectacular ou espectacularizável, nasceu com os Romanos, nas eras de decadência e degradação do «pão e circo», para domínio e neutralização da plebe), nos ditames da Política-Espectáculo, os decisores políticos optam convictos pela crescente mercantilização da Arte e da Cultura. O facto de estas serem dilaceradas em conjunto com a Educação, confirma e posiciona o fundamentalismo ideológico deste Governo no campo de trevas, retrógrado e obscurantista, «daqueles que têm algo a perder com a difusão do saber», o que se torna de todo indesmentível quando no espaço da União Europeia, juntamente com a má companhia da Hungria governada pela direita radical, prescinde da existência do Ministério da Cultura. Longe da meta de 1% recomendada num Orçamento Geral do Estado para a Cultura digno desse nome, decorrido mais de um quarto de século, o financiamento é hoje quatro vezes menor, em termos percentuais, do que o do tempo de Cavaco primeiro-ministro, tendo perdido, desde 2011, 75 por cento do seu valor. O grau zero dos orçamentos minguados, que já eram irrisórios, degenerou num infra-grau duma insignificância insultuosa que visa o aniquilamento e que constitui, desde logo, uma forma de censura camuflada, provocando exaustão e náusea.

As estruturas de criação, para além da sua ontológica missão primordial, elementos não desdenháveis na criação de emprego qualificado e na animação da vida económica das regiões, são esmagadas pela brutalidade da carga fiscal e pela redução dos apoios, tendo como certo o confronto com a instabilidade e a insegurança. Os profissionais debatem-se com a precariedade e o desemprego crescente. Os jovens saídos da formação do ensino artístico, também ele defrontando obstáculos de monta, têm enormes dificuldades em encontrar colocação profissional devido ao quadro de contracção vigente. Os dois teatros nacionais apresentam-se amputados por cortes sucessivos. O estímulo à dramaturgia contemporânea, inexistente.

A tutela do Estado institui uma burocracia informática avassaladora, plena de exigências inquisitivas menos preocupadas com os espectadores abrangidos e mais com o estabelecimento da Grande Norma, formatada para não ter em conta as especificidades projectuais e padronizada pela consagração de uma visão gestionária pseudo-sociológica e para-publicitária onde o cerne do trabalho artístico é invocado, mas, de facto, anda arredio e ainda que se manifeste, em teoria, pela valorização de uma política de repertório, objectivamente despreza-a na prática, abrindo assim caminho quer ao modismo fútil, transposto em linhas de força, pretensamente orientadoras, de um paroxismo histérico, tão novo e atractivo como a promoção de qualquer detergente ou refrigerante, quer ao entretenimento comercial alienante da sociedade de consumo e da sua manipulada cultura de massas, a trepanar cabeças, a vazar olhos, a afogar vontades. A diletância instalada em postos de mando olha para o todo nacional como o reino da parvónia provinciana. Os concursos lançados pela Direcção Geral das Artes, ou nem sequer chegam a abrir ou frequentemente violam as regras por ela própria estabelecidas, inquinados que estão por vícios de forma, arbitrariedades, não observância de procedimentos e boas práticas administrativas bem como dos princípios da equidade e da proporcionalidade, os quais demonstram, afinal de contas, tiques arrogantes de instrumentalização impune do aparelho de Estado, de clientelismo e conivência com pressões lobísticas.

Saída de cena

Tal como se verifica nos sectores da Saúde e da Educação, a Cultura é de igual modo alvo de uma tentativa de transferência de responsabilidades para os municípios, sem o acompanhamento imprescindível dos respectivos meios. O Estado, errático e furtando-se aos seus deveres, acaba por ser ele a parasitar os criadores, dando de menos e exigindo de mais, ambicionando a Lua por um pataco, o que desmente o estafado lugar-comum estereotipado da suposta subsídio-dependência. O conservadorismo político está a fazer um ajuste de contas revanchista cuja intolerância mais extremada condena, rosnando, a subvenção das Artes como «bolchevismo cultural».

Nesta conjuntura de regressão vislumbram-se laivos de tragédia. Howard Barker no seu Teatro da Catástrofe afirma:

«Porque sangraram até à morte a palavra Liberdade, a palavra Justiça ganha um novo significado».

O Teatro, «lugar onde nada existe e tudo pode acontecer», é ser efémero mas deixa consigo um rasto poderoso, oráculo que antecipa um outro tempo, por vir, que não o conformado ao fio dos dias. Herege, consagra a suprema utopia do fim da exploração do homem pelo homem e por isso é inimigo dos mercados porque não é um espaço dos dogmas sagrados da ideologia dominante mas sim do seu desmantelamento iconoclasta. É inimigo dos mercados porque estes, donos e senhores, corroem a Democracia impondo a sua lei de ganância e especulação a governos tíbios, num vendaval furioso de um capitalismo selvagem e desregulado. O mercado apenas decide sobre o que gera dinheiro e portanto nunca foi, não é e jamais será uma alternativa viável ao financiamento sem fins lucrativos.

Cabe ao Teatro cumprir o seu destino, divertindo e interpelando, como em muitas outras ocasiões fonte de resistência, em contracorrente, voz e instrumento rebelde de legítima revolta de quem não se resigna.

A esperança, nestes tristes dias, só pode vir pois da saída de cena, pela direita baixa, da trupe mal ensaiada deste desgoverno, recusando-lhe o bis, descendo o pano em definitivo a uma actuação pífia e vergonhosa, presumivelmente sob vaias, apupos, assobiadelas e forte pateada do público.

 



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«Passámos boa parte da primeira metade de 1994 a preparar a guerra na península coreana. [...] Nós os dois, então no Pentágono, preparámos os planos para atacar as instalações nucleares da Coreia do Norte e mobilizar centenas de milhares de soldados americanos para a guerra que provavelmente se teria seguido». Estas palavras foram escritas no Washington Post em 2002 (20.10.02), pelos dois principais responsáveis do Pentágono no primeiro governo do presidente Clinton. O então vice-ministro da Defesa e co-autor destas palavras, Ashton Carter, foi recentemente indicado por Obama para ser o novo ministro da Defesa dos EUA.